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03.05.2023

Legal Alert | Tutela privada do Regulamento dos Mercados Digitais

O Regulamento dos Mercados Digitais (Digital Markets Act, DMA), aprovado pelo Regulamento (UE) 2022/1925 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de setembro de 2022 (Regulamento), relativo à contestabilidade e equidade dos mercados no setor digital, que tem por objetivo contribuir «para o bom funcionamento do mercado interno mediante a previsão de regras destinadas a garantir a disputabilidade e a equidade dos mercados no setor digital, em geral, e, em especial, dos utilizadores profissionais e utilizadores finais de serviços essenciais de plataforma prestados por controladores de acesso» (cf. Considerando (7) do DMA), é aplicável a partir de 2 de maio de 2023.
De acordo com o Regulamento, o controlo da sua aplicação efetiva foi confiado à Comissão Europeia, o que significa que esta entidade tem competência exclusiva para aplicar o Regulamento (i.e., designar controladores de acesso, detetar casos de não conformidade com o diploma, impor medidas provisórias ou aplicar coimas).
Embora não se encontre uma referência explícita à tutela privada no Regulamento (ou seja, a tutela de partes privadas, como empresas ou utilizadores finais, face às obrigações legais dos controladores de acesso), a eficácia geral do DMA depende implicitamente da possibilidade de tutela dos interesses dessas partes.

Partindo do pressuposto de que as disposições que estipulam proibições e obrigações proativas para os controladores de acesso previstas nos artigos 5.º, 6.º e 7.º do DMA são suficientemente precisas e incondicionais, criando assim direitos para os indivíduos, e, por isso, tendo efeito direto, estas proibições e obrigações dos controladores de acesso podem ser invocadas pelos particulares em ações propostas contra os controladores de acesso em tribunais nacionais.

Na verdade, o DMA concede explicitamente vários direitos aos utilizadores profissionais e aos utilizadores finais: o Regulamento exige que os controladores de acesso forneçam opções gerais de acesso e de uso para os utilizadores profissionais; existem proibições específicas, por exemplo, no que diz respeito ao uso de dados; há várias disposições que versam também sobre a estrutura das relações contratuais entre controladores de acesso e utilizadores profissionais.

O artigo 39.º do DMA também sugere que os utilizadores profissionais ou utilizadores finais dos serviços da plataforma terão a possibilidade de intentar ações contra os controladores de acesso em qualquer altura independentemente de intervenção prévia por parte da Comissão.

Em Portugal, a tutela privada do DMA é garantida através da lei nacional.

Na sequência da transposição para o direito português da Diretiva 2014/104/UE (Diretiva “Private Enforcement”), a indemnização por infração às disposições do direito da concorrência (artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) e a Lei da Concorrência, aprovada pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio) é regulada pela Lei n.º 23/2018, de 5 de junho (a “Lei do Private Enforcement”).
Até ao momento não foi feita, nem se antecipa, qualquer tentativa de ampliação do escopo desta lei nacional e de qualquer uma das suas regras específicas (acesso à prova, danos presumidos, força probatória das decisões sobre a infração, etc.) por forma a abranger, a par das ações de indemnização no âmbito de infrações ao direito da concorrência, também as ações de indemnização por violação de obrigações previstas no DMA por parte dos controladores de acesso. Por assim ser, a tutela privada do DMA em Portugal encontra-se, à data, sujeita às regras gerais de direito, nomeadamente ao processo civil, e não ao regime específico (substantivo e processual) de indemnização por infração ao direito da concorrência.

Embora a Lei do Private Enforcement não seja aplicável ao cumprimento das obrigações do DMA, os utilizadores profissionais e os utilizadores finais que pretendam opor-se aos comportamentos dos controladores de acesso podem lançar mão dos mecanismos gerais existentes: ações de responsabilidade civil extracontratual (ao abrigo do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil) e providências cautelares de modo a prevenir ofensas graves e potencialmente irreparáveis aos direitos criados por este Regulamento (conforme previsto no artigo 362.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Parece igualmente possível que, para algumas das obrigações previstas nos artigos 5.º, 6.º e 7.º do DMA (por exemplo, a proibição de favorecimento contida no artigo 6.º, n.º 5), os prestadores alternativos de serviços digitais que procuram competir com um controlador de acesso possam confiar na proibição legal de concorrência desleal.

Além das ações que podem ser intentadas por particulares e que são igualmente aplicáveis a utilizadores profissionais e utilizadores finais (nomeadamente aos consumidores de serviços digitais), também os mecanismos nacionais de tutela coletiva ou ações populares constituem forma de tutelar a aplicação do DMA, pese embora apenas estejam disponíveis para utilizadores finais.

Com efeito, apesar de a implementação da Diretiva (UE) 2020/1828 – expressamente referida no artigo 42.º do DMA e, portanto, aplicável às ações populares propostas contra controladores de acesso que violem as suas obrigações decorrentes do Regulamento e, ao fazê-lo, prejudiquem ou possam prejudicar os interesses coletivos dos consumidores – não ter ainda ocorrido em Portugal, o procedimento geral previsto na Lei que regula o direito de participação procedimental e de ação popular (Lei n.º 83/95, de 31 de agosto – “Lei da Ação Popular”) é aplicável a todas as áreas e setores do direito, inclusive ao DMA.

O artigo 42.º do DMA prevê expressamente o direito de ação popular no que respeita a violações de disposições do Regulamento cometidas por controladores de acesso que prejudiquem ou possam prejudicar os interesses coletivos dos consumidores. Porém, não existe uma disposição semelhante para os utilizadores profissionais ou associações profissionais. De igual modo, de acordo com a Lei da Ação Popular, a ação popular pode ser proposta por qualquer cidadão, no exercício dos seus direitos civis e políticos e também por associações e fundações defensoras de certos interesses, independentemente de terem ou não interesse direto no processo, mas não por empresas ou profissionais. Resulta, assim, evidente que, de acordo com o regime atualmente em vigor, os utilizadores profissionais não podem propor ações populares contra os controladores de acesso. Não existindo, no entanto, disposição quanto à sua representação em geral, as associações empresariais não devem necessariamente ser excluídas do direito de ação popular.

Por fim, importa clarificar que, pelo menos para já, a lei portuguesa não prevê a existência de tribunais especializados para dar resposta a ações de indemnização decorrentes do eventual incumprimento do DMA, pelo que, com exceção das ações relativas a concorrência desleal, serão competentes para conhecer daquelas os juízos cíveis portugueses, quer estejamos perante ações propostas por utilizadores profissionais, prestadores de serviços concorrentes dos controladores de acesso ou utilizadores finais.

Em suma, a tutela privada parece desempenhar um papel importante no contexto do DMA: as ações (individuais e populares) de indemnização por violação de obrigações previstas no DMA constituem meios disponíveis para os utilizadores das plataformas controlarem o poder de mercado dos controladores de acesso.