Introdução
Em maio de 2009, a Comissão Europeia (“Comissão”) concluiu que a Intel havia abusado da sua posição dominante no mercado dos processadores x86, ao implementar uma estratégia com vista a excluir do mercado o seu único concorrente real, a Advanced Micro Devices (“AMD”), tendo-lhe aplicado uma coima de 1,06 mil milhões de euros, à data a coima mais elevada imposta a uma empresa pela Comissão por violação das regras de direito europeu da concorrência.
As condutas da Intel consideradas abusivas pela Comissão consistiram em:
(i) conceder descontos a quatro dos principais fabricantes de computadores (Dell, Lenovo, HP e NEC) na condição de estes lhe comprarem a totalidade, ou a quase totalidade, dos processadores x86;
(ii) conceder pagamentos à empresa retalhista Media-Saturn na condição de esta vender exclusivamente computadores equipados com processadores x86 da Intel; e
(iii) conceder pagamentos a três fabricantes de computadores (HP, Acer e Lenovo) na condição de estes adiarem ou cancelarem o lançamento de produtos com processadores da AMD.
A decisão foi impugnada pela Intel junto do Tribunal Geral da União Europeia, o qual em junho de 2014 confirmou a decisão da Comissão e declarou o recurso improcedente. A Intel então recorreu do acórdão do Tribunal Geral para o Tribunal de Justiça. Em outubro de 2016, o Advogado-geral Wahl apresentou as suas conclusões sobre o recurso, recomendando que o Tribunal de Justiça anulasse o acórdão do Tribunal Geral, entre outros por não ter analisado os efeitos dos descontos oferecidos pela Intel sobre a concorrência.
No seu muito aguardado acórdão, de 6 de setembro de 20171, o Tribunal de Justiça concordou com o Advogado-geral e anulou a decisão do Tribunal Geral, tendo remetido o processo ao primeiro tribunal para reapreciação. O acórdão do Tribunal de Justiça traz mais clareza à jurisprudência existente sobre descontos e a uma área em que as empresas com posição dominante há muito enfrentam considerável incerteza.
Clarificação do entendimento sobre descontos de fidelidade
Nos termos da jurisprudência dos tribunais europeus (que não é posta em questão pelo acórdão Intel), numa apreciação de um eventual abuso de posição dominante, ao abrigo do artigo 102.º TFUE, podem ser identificadas três categorias de descontos:
- Os descontos de quantidade, ligados exclusivamente ao volume de compras efetuadas ao fornecedor numa determinada encomenda ou pedido individual, são admissíveis, na medida em que correspondem às poupanças obtidas pela empresa dominante;
- Os descontos de fidelidade ou de exclusividade, concedidos aos clientes que se comprometam a adquirir todas ou a maior parte das suas necessidades à empresa dominante, que se presumem abusivos, exceto se puderem ser objetivamente justificados pela empresa dominante;
- Os outros descontos não inseridos nas duas categorias anteriores, em particular os descontos condicionais, concedidos se o comprador atingir determinados objetivos de compras num determinado período, que devem ser analisados tendo em conta todas as circunstâncias relevantes para aferir se o desconto é suscetível de produzir um efeito de exclusão anti-concorrencial, por restringir ou impedir o acesso de concorrentes ao mercado ou a possibilidade de os clientes escolherem entre várias fontes de abastecimento.
Os descontos concedidos pela Intel foram considerados descontos “de fidelidade”, pois dependiam de os clientes adquirirem todas, ou “quase todas” (80% a 95%) dos seus processadores x86 à Intel. Em primeira instância, o Tribunal Geral (invocando a jurisprudência existente do Tribunal de Justiça) confirmou a linha de argumentação da Comissão segundo a qual os descontos de fidelidade concedidos por uma empresa dominante são, pela sua natureza, capazes de restringir a concorrência, pelo que não era necessário analisar todas as circunstâncias concretas das condutas, nem, em especial, proceder à análise do teste do “concorrente tão eficiente” (“as eficient competitor test”, “AEC”).
No entanto, o Tribunal de Justiça notou que a Comissão procedeu, não obstante, na sua decisão, a um exame aprofundado das circunstâncias concretas, o que a levou a concluir que um concorrente igualmente eficaz teria de praticar preços inviáveis e que, por conseguinte, a prática de descontos em causa era suscetível de excluir esse concorrente. O Tribunal observou igualmente que o teste AEC teve uma “importância real” na apreciação, pela Comissão, da capacidade da prática em causa de produzir um efeito de exclusão dos concorrentes, e que, por essa razão, o Tribunal Geral estava obrigado a examinar todos os argumentos da Intel formulados a propósito desse teste (nomeadamente os erros que a Comissão tinha alegadamente cometido relativamente ao teste), o que não fez.
Mais significativamente, o Tribunal de Justiça clarificou que, nos casos em que a empresa investigada sustente, no procedimento administrativo, com base em elementos de prova, que o seu comportamento não foi capaz de restringir a concorrência e, em particular, de produzir os efeitos de exclusão recriminados, “a Comissão tem a obrigação de analisar todas as circunstâncias relevantes do caso”, e designadamente a importância da posição dominante da empresa, a taxa de cobertura do mercado pelos descontos controvertidos, as condições, modalidades, duração e montante dos descontos em causa, bem como a eventual existência de uma estratégia destinada a excluir os concorrentes pelo menos igualmente eficientes.
O Tribunal de Justiça considerou também que a análise da capacidade de exclusão é também relevante para apreciar a questão de saber se um sistema de descontos pode ser objetivamente justificado, e designadamente quando os efeitos de exclusão forem compensados por ganhos de eficiência suscetíveis de beneficiar também o consumidor.
Comentário
O acórdão Intel não modifica o princípio estabelecido por jurisprudência constante (com origem no acórdão Hoffmann-La Roche, de 1979), segundo a qual “se presume” que os descontos de fidelidade são capazes de restringir a concorrência e portanto são abusivos. No entanto, o Tribunal de Justiça clarifica que as empresas sob investigação podem ilidir essa presunção, e em particular que, quando tais empresas apresentem elementos de prova para o efeito, a Comissão deve analisar seriamente qualquer argumento no sentido de que os descontos em questão não têm a “capacidade” de produzir um efeito restritivo sobre a concorrência.
A decisão do Tribunal de Justiça aponta assim para uma abordagem mais baseada nos efeitos económicos (a qual de resto já se encontrava prevista desde 2008 nas orientações da Comissão sobre as prioridades na aplicação do artigo 102.º), o que é de louvar.
No que respeita à coima imposta à Intel, embora o acórdão do Tribunal Geral tenha sido anulado (o Tribunal de Justiça rejeitou outros argumentos aduzidos pela recorrente em matéria de jurisdição territorial e irregularidades processuais), a saga da Intel não chegou ainda ao fim, pois o processo regressou para o Tribunal Geral para que este examine se, à luz dos argumentos apresentados pela Intel, os descontos em causa tinham efetivamente a capacidade de restringir a concorrência.
Outra questão deixada em aberto pelo acórdão Intel é também o alcance do termo “capacidade” (de restringir a concorrência), ao qual o acórdão confere particular importância, e que o Advogado-geral Wahl considera que não pode significar apenas uma «[p]ossibilidade hipotética ou teórica», mas uma análise que visa determinar se «[é] provável [in all likelihood] que o comportamento recriminado tenha um efeito de exclusão anti-concorrencial.». O novo acórdão do Tribunal Geral será pois aguardado com expectativa.
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1 Acórdão de 6 de setembro de 2017, Intel Corporation Inc. c. Comissão, C-413/14P, EU:C:2017:632, acedido e disponível em curia.europa.eu.