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18.01.2024

Legal Alert | Concorrência e Desporto - Acórdãos relevantes que esclarecem a aplicação do direito da concorrência da UE às regras das organizações desportivas

No final do mês passado, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE ou Tribunal de Justiça) proferiu dois acórdãos relevantes em que, uma vez mais, analisou a aplicação do direito da concorrência da União Europeia (UE) à regulação de atividades desportivas.

Com efeito, quer no processo C-333/21, European Superleague Company, quer no processo C-124/21 P, International Skating Union c. Comissão, o TJUE começa por reafirmar que o desporto é uma atividade económica e, nessa medida, está sujeito à aplicação das normas de concorrência do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE). Além disso, as regras das associações e federações desportivas relativas a essas atividades são consideradas decisões de associações de empresas, para efeitos de aplicação do direito da concorrência. Portanto, o Tribunal de Justiça foi chamado a interpretar, nos casos em apreço, as normas de direito da concorrência que vigoram na UE (artigos 101.º e 102.º do TFUE).

Caso C-333/21, European Superleague Company

Este primeiro acórdão resulta de um pedido de reenvio prejudicial de um tribunal espanhol, num caso que opunha a FIFA e a UEFA à empresa European Superleague Company SL, constituída por iniciativa de vários clubes de futebol profissional [1] e cujo objetivo era criar a “Super League”, uma nova competição internacional de futebol. A FIFA e a UEFA opuseram-se à criação desta nova competição, porque alegavam que os seus estatutos lhes conferiam exclusividade para organizar ou autorizar competições internacionais de clubes de futebol profissionais na Europa.

No essencial, o TJUE considerou que as regras da FIFA e da UEFA, que exigem a sua aprovação prévia para competições como a “Super League”, são contrárias ao direito da concorrência, pois constituem um abuso de posição dominante (artigo 102.º do TFUE) e uma decisão de associação de empresas que tem por objeto a restrição da concorrência (artigo 101.º, n.º 1, do TFUE).

Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça considera que, quando uma empresa em posição dominante tem o poder de determinar as condições de acesso ao mercado de empresas potencialmente concorrentes, esse poder deve, tendo em conta o risco de conflito de interesses, estar sujeito a critérios adequados para garantir a sua transparência, objetividade, não discriminação e proporcionalidade. No entanto, os poderes da FIFA e da UEFA não estão sujeitos a quaisquer critérios deste tipo, pelo que, por conseguinte, estas entidades estão a abusar de uma posição dominante.

Além disso, dada a sua natureza arbitrária, as regras da FIFA e da UEFA quanto à aprovação, controlo e sanções são consideradas restrições injustificadas à livre prestação de serviços.

Paralelamente, o TJUE concluiu que as regras da FIFA e da UEFA relativas à exploração dos direitos de transmissão são suscetíveis de prejudicar os clubes de futebol europeus, todas as empresas que operam nos mercados dos meios de comunicação social e, em última análise, os consumidores e os telespectadores, impedindo-os de beneficiar de competições novas e potencialmente inovadoras ou interessantes.

Com este acórdão, o TJUE estabelece como requisito a necessidade de as organizações desportivas operarem no mercado através de um quadro regulatório com critérios transparentes, objetivos, não discriminatórios e proporcionais.

Caso C-124/21 P, International Skating Union c. Comissão

Neste segundo acórdão estava em causa uma decisão da Comissão Europeia que, em 2017, considerou que as regras da International Skating Union (ISU) relativas à autorização de competições de patinagem e à participação de atletas violavam as normas do direito da concorrência da UE.

De acordo com estas regras, a organização de competições internacionais de patinagem artística e de patinagem de velocidade exigiria a aprovação prévia da ISU e, caso um atleta participasse numa competição que não tivesse sido por si autorizada, poderia ser por ela excluído de todas as competições. As recusas de autorização e as sanções aos atletas só poderiam, segundo as regras da ISU, ser contestadas perante o Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne, na Suíça.

Com o presente acórdão, o Tribunal de Justiça anula o acórdão do Tribunal Geral (que, em 2020, julgou parcialmente a favor e contra a ISU) confirmando a ilicitude das regras da ISU relativas à autorização e participação em competições internacionais de patinagem artística e de patinagem de velocidade. Com efeito, essas regras foram consideradas restritivas da concorrência, uma vez que conferem à ISU uma clara vantagem sobre os seus concorrentes, dando-lhe, inclusive, o poder de autorizar ou impedir o acesso de concorrentes potenciais ao mercado.

Nessa medida, o Tribunal de Justiça sublinha que uma associação desportiva como a ISU pode adotar e fazer respeitar, através de sanções, regras relativas à organização e à realização de competições. No entanto, essas regras devem estar sujeitas a um quadro que garanta a sua transparência, objetividade, não discriminação e proporcionalidade. Se assim não for, essas regras são suscetíveis de permitir a exclusão de qualquer empresa concorrente do mercado e de limitar a realização de novas competições.

Por outro lado, o Tribunal de Justiça considerou, ao contrário do Tribunal Geral, que a Comissão colocou corretamente em causa as regras de arbitragem, uma vez que as mesmas privariam os atletas de um acesso efetivo aos tribunais.

Em suma, na esteira da Comissão Europeia, o TJUE confirma que as regras da ISU em apreço são contrárias ao direito da UE, pois não estão sujeitas a qualquer garantia que assegure a sua transparência, objetividade, não discriminação e proporcionalidade.

Conclusão

Com estes acórdãos, o Tribunal de Justiça vem reafirmar que a regulação das atividades desportivas deve respeitar integralmente as normas europeias de direito da concorrência (que são materialmente equivalentes às normas de concorrência portuguesa).

Nessa medida, torna-se particularmente relevante que as organizações desportivas garantam que operam no mercado através de um quadro regulatório com critérios transparentes, objetivos, não discriminatórios e proporcionais, sob pena de atuarem em violação do direito da concorrência.


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[1] Nomeadamente os seguintes: Club Atlético de Madrid, Fútbol Club Barcelona e Real Madrid Club de Fútbol (Espanha), Associazione Calcio Milan, Football Club Internazionale Milano e Juventus Football Club (Itália), Arsenal Football Club, Chelsea Football Club, Liverpool Football Club, Manchester City Football Club, Manchester United Football Club e Tottenham Hotspur Football Club (Reino Unido).