No dia 9 de dezembro foi publicado o Decreto da Assembleia da República n.º 22/XVII, que executa nacionalmente o Regulamento (UE) 2023/1114 (MiCA) e altera o Código dos Valores Mobiliários e o Regime do Livro de Reclamações. O MiCA é o primeiro regulamento europeu de harmonização dos mercados de criptoativos, promovendo estabilidade, integridade, transparência e proteção dos investidores. A Lei de Execução atribui ao Banco de Portugal e à CMVM responsabilidades distintas de supervisão, com um regime de cooperação obrigatória. Os pedidos de autorização dos prestadores de serviços de criptoativos são submetidos ao Banco de Portugal, com articulação com a CMVM. Prevê-se um regime transitório até 1 de julho de 2026 para entidades já registadas como VASP. O novo quadro exige preparação rigorosa dos operadores, incluindo definição do modelo de negócio, revisão contratual e reforço do compliance, sendo essencial antecipar o processo para garantir continuidade e mitigar riscos regulatórios.
Enquadramento
No dia 9 de dezembro foi publicado o Decreto da Assembleia da República n.º 22/XVII, aprovado pela Assembleia da República em 5 de dezembro, que assegura a execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento (UE) 2023/1114, de 31 de maio de 2023 (MiCA), relativo aos mercados de criptoativos, e altera o Código dos Valores Mobiliários1 e o Regime do Livro de Reclamações2, (Lei de Execução).
O MiCA constitui o primeiro instrumento normativo de harmonização do mercado de criptoativos, prosseguindo objetivos estruturantes de política legislativa europeia, designadamente: (i) a estabilidade do sistema financeiro; (ii) a integridade e transparência dos mercados de criptoativos; e (iii)a proteção reforçada dos investidores e consumidores.
A Lei de Execução tem como objetivo:
- Designar as autoridades nacionais competentes;
- Repartir as competências de supervisão;
- Densificar os poderes de fiscalização e instrução;
- Configurar o regime contraordenacional; e
- Estabelecer o regime transitório de conversão do anterior modelo de prestadores de ativos virtuais para o novo de prestadores de serviços de criptoativos.
Modelo de supervisão e repartição de competências
Designação das autoridades nacionais competentes
A Lei de Execução do Regulamento MiCA designa em Portugal como Autoridades Nacionais Competentes (ANC) o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), consagrando um modelo de supervisão funcionalmente repartido entre ambas as entidades, assente na distinção material entre supervisão prudencial e supervisão de mercado, em regime de cooperação obrigatória e coordenação procedimental.
Os pedidos de autorização para a prestação de serviços de criptoativos devem ser apresentados junto do Banco de Portugal, que atua em articulação com a CMVM.
Competências do Banco de Portugal
Nos termos do artigo 2.º da Lei de Execução, o Banco de Portugal é a “autoridade competente responsável” pela (i) supervisão dos Títulos III e IV, do Regulamento MiCA; e (ii) supervisão dos Capítulos 1, 4 e 5, do Título V e dos artigos 67.º a 69.º, 73.º e 74.º, do Regulamento MiCA.
Esta repartição abrange:
i. Títulos III e IV, do Regulamento MiCA:
- Título III: referente a Criptofichas Referenciadas a Ativos (ART);
- Título IV: referente a Criptofichas de Moeda Eletrónica (EMT).
ii. Título V, quanto aos Prestadores de Serviços de Criptoativos (CASP), supervisão dos Capítulos 1, 4 e 5, do Título V e artigos específicos:
- Capítulo 1 do Título V: Autorização e revogação de autorização de CASP;
- Capítulo 2 do Título V:Obrigações para todos os CASP:
- Artigos 67.º a 69.º: Requisitos prudenciais, mecanismos de governação e informação às autoridades competentes;
- Artigos 73.º e 74.º: Subcontratação e liquidação ordenada dos CASP.
- Capítulo 4 do Título V: Aquisição de CASP;
- Capítulo 5 do Título V: Prestadores significativos de serviços de criptoativos.
Competências da CMVM
Nos termos do artigo 2.º da Lei de Execução, a CMVM é a “autoridade competente responsável” pela (i) supervisão dos Títulos II e VI, do Regulamento MiCA; e (ii) supervisão do Capítulo 3 do Título V e dos artigos 66.º e 70.º a 72.º, do Regulamento MiCA.
Esta repartição de competências abrange:
i) Títulos II e VI,do Regulamento MiCA:
- Título II: referente a ofertas públicas e admissão à negociação de criptoativos que não sejam ART ou EMT;
- Título VI: referente à prevenção e abuso de mercado ligados a criptoativos.
ii) Título V, quanto aos CASP, supervisão do Capítulo 3 do Título Ve artigos específicos:
- Capítulo 2 do Título V: Obrigações para todos os CASP:
- Artigo 66.º: Dever de atuar com honestidade, lealdade e profissionalismo no melhor interesse dos clientes;
- Artigos 70.º a 72.º: Guarda dos criptoativos e dos fundos dos clientes, procedimento de tratamento das reclamações e identificação, prevenção, gestão e divulgação de conflitos de interesses.
- Capítulo 3 do Título V: Obrigações relativas a serviços específicos de criptoativos, a saber:
- Custódia e administração de criptoativos em nome de clientes;
- Operação de uma plataforma de negociação de criptoativos;
- Troca de criptoativos por fundos ou por outros criptoativos;
- Execução de ordens relativas a criptoativos em nome de clientes;
- Colocação de criptoativos;
- Receção e transmissão de ordens relativas a criptoativos em nome de clientes;
- Consultoria sobre criptoativos e gestão de carteiras de criptoativos; e
- Serviços de transferência de criptoativos em nome de clientes.
A CMVM assegura ainda a aplicação das disposições do Título VI do Regulamento MiCA a todos os atos respeitantes a criptoativos admitidos à negociação numa plataforma de negociação de criptoativos que tenha Portugal como Estado-Membro de origem.
Regime de cooperação obrigatória
O artigo 5.º da Lei de Execução impõe ao Banco de Portugal e à CMVM um regime de cooperação estreita, com troca de informações por iniciativa própria ou sempre que solicitado, relativamente a todas as informações essenciais ou relevantes para o exercício das funções de supervisão. Ambas as autoridades estabelecem mecanismos de cooperação e troca de informações relativamente à fiscalização do cumprimento das obrigações decorrentes do Regulamento MiCA.
Regime de acesso à atividade e autorização dos CASP
Tal como referido supra, os pedidos de autorização para a prestação de serviços de criptoativos devem ser apresentados junto do Banco de Portugal, que atua em articulação com a CMVM.
Nos termos do artigo 6.º da Lei de Execução:
- O Banco de Portugal deve remeter à CMVM, no prazo de 2 dias úteis (i) as notificações apresentadas ao abrigo do artigo 60.º do MiCA (e.g., fase inicial de comunicação da intenção de prestação de serviços); e (ii) os pedidos formais de autorização apresentados ao abrigo do artigo 62.º do MiCA;
- Após tal comunicação, a CMVM dispõe dos seguintes prazos legais para a emissão de parecer fundamentado:
i. 10 dias úteis para se pronunciar sobre a completude das notificações apresentadas nos termos do artigo 60.º do MiCA, assim como para se pronunciar sobre a completude dos pedidos de autorização apresentados nos termos do artigo 62.º do MiCA;
ii. 15 dias úteis, contados da receção da comunicação do Banco de Portugal quanto à completude do pedido, para se pronunciar sobre o cumprimento dos requisitos previstos no Título V do MiCA, para efeitos da concessão ou recusa da autorização.
Silêncio da CMVM: Na ausência de pronúncia da CMVM dentro dos prazos supra indicados, considera-se que esta não formula objeções quanto: (i) à completude da notificação; (ii) à completude do pedido de autorização; e (iii)ao cumprimento, pelo requerente, das obrigações de conduta e de mercado relevantes para efeito de autorização.
O Banco de Portugal comunica à CMVM a decisão final da autorização, ampliação, redução ou revogação da autorização para a prestação de serviços de criptoativos, bem como as alterações supervenientes relevantes, designadamente quanto à composição dos órgãos sociais e às participações qualificadas.
Regime transitório
A Lei de Execução do MiCA estabelece um regime transitório destinado às entidades que, à data de entrada em vigor do novo enquadramento, se encontravam registadas junto do Banco de Portugal ao abrigo do anterior regime aplicável às entidades que exercem atividades com ativos virtuais (Virtual Asset Service Providers, VASP).
As entidades VASP que, a 30 de dezembro de 2024, se encontravam (i) registadas junto do Banco de Portugal e (ii) com atividade iniciada e devidamente comunicada, podem continuar a exercer as atividades com ativos virtuais para as quais se encontravam habilitadas até 1 de julho de 2026 ou até à decisão final de concessão ou recusa da autorização ao abrigo do MiCA, consoante o que ocorrer em primeiro lugar, sendo tratadas, durante esse período, como CASP, para efeitos da aplicação do disposto no MiCA e da legislação e regulamentação aplicável em matéria de Prevenção de Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo.
Durante o período transitório, continuam a ser aplicáveis às entidades VASP com atividade iniciada e comunicada determinadas normas ainda vigentes da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto e das demais normas legais e regulamentares em matéria de Prevenção de Branqueamento de Capitais e do Financiamento do Terrorismo, bem como o Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2023, de 24 de janeiro. No mais, estas entidades devem comunicar ao Banco de Portugal quaisquer alterações que se verifiquem relativas à firma e denominação, sede e local de administração, jurisdições de atuação e identificação dos membros dos órgãos de administração e fiscalização.
Contudo, o registo caduca automaticamente para as entidades que, a 30 de dezembro de 2024 se encontravam registadas, mas não tivessem iniciado efetivamente a atividade, nem a tivessem comunicado nos termos legalmente impostos. Estas entidades ficaram, assim, impedidas de prosseguir qualquer atividade relacionada com ativos virtuais ou criptoativos, salvo se vierem a obter autorização ao abrigo do novo regime MiCA.
Adicionalmente, durante o período transitório, a autorização anteriormente concedida caduca automaticamente, caso se verifique qualquer alteração relativa:
- Ao objeto social;
- Ao tipo de atividade(s) com ativos virtuais a exercer;
- Aos detentores de participações diretas ou indiretas; e
- Aos beneficiários efetivos.
Em tais casos, a entidade fica imediatamente proibida de prosseguir a atividade, sem prejuízo da possibilidade de vir a obter autorização ao abrigo do MiCA.
Com a Lei de Execução, foram igualmente extintos:
- Os procedimentos de pedidos de registo inicial pendentes a 30 de dezembro de 2024; e
- Os pedidos de alteração de registo ainda não decididos nessa data.
Quanto aos procedimentos de cancelamento de registo, em curso à mesma data, prosseguem os seus termos até à decisão final.
Próximos passos
Em particular, importa destacar que:
i. O novo regime de autorização, supervisão e sancionatório é aplicável aos prestadores de serviços de criptoativos que iniciem atividade após a entrada em vigor do quadro nacional;
- As entidades anteriormente registadas junto do Banco de Portugal ao abrigo do regime de “ativos virtuais” beneficiam de um regime transitório até 1 de julho de 2026, ou até à decisão final do respetivo pedido de autorização ao abrigo do MiCA, consoante o que ocorrer primeiro;
- Durante o período transitório, mantêm-se aplicáveis, em termos complementares, determinadas obrigações do regime anterior, designadamente em matéria de prevenção do branqueamento de capitais.
Em antecipação da plena sujeição ao regime MiCA, é recomendável que as entidades:
- Determinem o seu enquadramento regulatório ao identificar se se qualificam como CASP, como emitentes de criptoativos e, quais os serviços concretos que pretendem prestar ao abrigo do novo regime;
- Iniciem a preparação do processo de autorização junto do Banco de Portugal, incluindo a definição do modelo de negócio, estrutura de governação, políticas internas e cumprimento dos requisitos regulatórios;
- Adequem os seus mecanismos internos de compliance aos novos deveres de reporte às autoridades, tratamento de reclamações, resolução alternativa de litígios e prevenção e deteção de abuso de mercado;
- Procedam à revisão dos contratos com terceiros críticos, incluindo, designadamente os prestadores de serviços TIC, de modo a assegurar a conformidade com as exigências de subcontratação, segurança e acesso à informação pelas autoridades de supervisão;
- Assegurem a revisão da documentação contratual com clientes, incluindo os termos e condições, políticas de execução de ordens, informação pré-contratual, entre outros.
O novo enquadramento introduzido pelo MiCA e pela respetiva Lei de Execução representa uma mudança estrutural no modo como o setor dos criptoativos passa a operar em Portugal, exigindo uma abordagem preventiva, planeada e juridicamente estruturada por parte dos operadores.
A antecipação na preparação do processo de autorização e na adaptação dos modelos operacionais constitui, neste contexto, um fator crítico de continuidade da atividade e de mitigação do risco regulatório e sancionatório.
_______________________
1 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro.