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05.02.2024

Legal Alert | Proposta de novo Regulamento europeu sobre o controlo dos investimentos diretos estrangeiros na União Europeia

No passado dia 24 de janeiro, a Comissão Europeia publicou uma Proposta de Regulamento para reforçar o controlo das operações de investimento direto estrangeiro na União Europeia (Proposta).

A Proposta faz parte de um conjunto de medidas anunciadas pela Comissão que visam melhorar a segurança económica da União Europeia e pretende corrigir ineficiências do regime em vigor, instituído pelo Regulamento (UE) 2019/452 do Parlamento Europeu e do Conselho, que estabelece um regime de análise dos investimentos diretos estrangeiros na União Europeia (UE).  O Regulamento (UE) 2019/452 atualmente permite (mas não impõe) a adoção pelos Estados‑Membros de um regime de análise destes investimentos por razões de segurança ou de ordem pública e institui um mecanismo de cooperação entre os Estados‑Membros e a Comissão quando as autoridades nacionais de um ou mais Estados decidem analisar determinado investimento estrangeiro.

A Proposta inclui alterações profundas ao atual regime, nomeadamente a obrigação de criação de um regime nacional de análise por cada Estado‑Membro, o que atualmente é opcional, a obrigatoriedade da notificação prévia de operações em determinados setores sensíveis e o reforço do mecanismo de cooperação entre autoridades nacionais.

Portugal dispõe de um mecanismo de controlo de investimento estrangeiro desde 2014. O Decreto-Lei n.º 138/2014, de 15 de setembro, confere ao Governo português o poder de investigar transações que resultem direta ou indiretamente na aquisição de controlo por um investidor de um país terceiro à UE ou ao Espaço Económico Europeu, que incida sobre ativos estratégicos em setores essenciais, tais como a defesa, a energia, os transportes ou as comunicações. Nos termos deste diploma, o Governo pode adotar uma decisão de oposição a uma transação investigada na medida em que esta ponha em causa a defesa e segurança nacional ou a segurança do aprovisionamento do país em serviços fundamentais para o interesse nacional.

A Proposta implicará, no entanto, a alteração profunda do regime português em várias vertentes.

Requisitos do regime de análise

De acordo a Proposta, passam a estar sujeitas a autorização prévia obrigatória operações que envolvam alvos que participem em programas da UE designados de interesse europeu ou que estejam ativos em setores considerados estratégicos pela sua especial relevância para a segurança e ordem pública, tais como semicondutores, inteligência artificial, biotecnologia, comunicações digitais, novas tecnologias energéticas (hidrogénio, smart grids, baterias, etc.), robótica, medicamentos críticos, ou serviços essenciais ao sistema financeiro (cf. os Anexos I e II). Também é prevista a imposição de uma obrigação de standstill para estes investimentos, ou seja, as transações sujeitas a notificação obrigatória não podem ser concretizadas antes de aprovadas pelas autoridades nacionais competentes.

Os regimes de análise nacionais devem igualmente cumprir um conjunto de “critérios mínimos”. Entre outros, nos casos de investimentos não sujeitos a obrigação de notificação, a autoridade nacional competente deve poder avaliar uma operação até 15 meses após a realização da operação em causa.

Nos termos do Decreto-Lei n.º 138/2014, atualmente o procedimento de avaliação de uma operação pelo Governo é opcional, devendo ser realizada no prazo de 30 dias após a celebração do negócio jurídico. A aprovação da Proposta implicará assim a necessidade da criação em Portugal de um mecanismo de notificação obrigatória e autorização prévia, bem como um alargamento do prazo para as investigações dos restantes investimentos por iniciativa da autoridade responsável. Passará também a ser necessário publicar um relatório anual sobre a aplicação do regime nacional, permitindo reforçar o conhecimento público sobre a sua aplicação prática, o que atualmente não sucede.

Novos critérios para avaliação dos investimentos

Uma das novidades da Proposta diz respeito aos critérios para aferir se o investimento “afeta negativamente a segurança ou ordem pública”, que passam a ser de observância obrigatória em vez de opcionais (embora não pretendam ter carácter exaustivo): o impacto nas infraestruturas críticas, nas tecnologias críticas, no aprovisionamento de fatores de produção críticos, na proteção de informação sensível ou na liberdade e pluralismo dos media. Uma vez que os critérios de apreciação do Decreto-Lei n.º 138/2014 acima referidos são significativamente mais circunscritos, a revisão do regime nacional implicaria igualmente um alargamento dos interesses de segurança e ordem pública relevantes no âmbito da análise das operações de investimento.

Âmbito alargado a entidades europeias controladas por investidores de países terceiras

A Proposta inclui uma extensão do âmbito do atual Regulamento para abranger as operações de investimento realizadas por entidades estabelecidas na União Europeia, mas que são indiretamente controladas por investidores de países terceiros à UE. Esta clarificação tornou‑se necessária na sequência do acórdão do Tribunal de Justiça no processo C-106/22, Xella Magyarország, que decidiu que o Regulamento (UE) 2019/452 apenas se aplicava às operações realizadas por entidades de países terceiros. Neste aspeto, o regime português não careceria de alteração, uma vez que já prevê a aplicação do mecanismo de análise em casos de controlo indireto por entidades fora da UE ou do EEE (cf. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 138/2014).

Reforço do papel de outros Estados‑Membros e da Comissão

A Proposta visa ainda reforçar significativamente o mecanismo de cooperação existente entre os Estados Membros onde ocorre o investimento, a Comissão, e os restantes Estados‑Membros:

  • São criadas regras específicas para o procedimento quanto a investimentos que afetem vários Estados-Membros, tanto para o investidor notificante (que deverá notificar todos os Estados afetados em simultâneo) como para as autoridades nacionais, que se devem coordenar entre si na tomada de decisão (por exemplo, nos casos em que vários Estados decidam abrir uma investigação aprofundada a uma determinada operação, a decisão deverá ser tomada na mesma data).
  • Tal como atualmente, o Estado-Membro que inicie uma investigação deve informar a Comissão e os restantes Estados-Membros e tomar as opiniões destes em consideração. A Proposta inova ao determinar que o Estado‑Membro no qual o investimento tem lugar deverá organizar uma reunião para discussão da decisão planeada com outros Estados‑ Membros e a Comissão e, subsequentemente, informar a Comissão e os outros Estados‑Membros sobre a decisão final que tomou, justificando-a em face das posições prévias transmitidas por estes.
  • Outro instrumento inovador é o “procedimento por iniciativa própria”, que permite a um Estado‑Membro proceder à análise de um investimento realizado no território de um outro Estado‑Membro (no caso de este não ter sido notificado), quando considere que a sua própria segurança ou ordem pública podem ser afetadas. A Comissão tem igualmente este poder quanto a investimentos que considere que afetam negativamente a segurança ou ordem pública de mais do que um Estado-Membro ou projetos da União.

Mesmo no contexto do regime europeu em vigor, o Decreto-Lei n.º 138/2024 não estabelece quaisquer mecanismos de cooperação com a Comissão ou com outros Estados-Membros, nem a adaptação dos prazos de análise nacionais aos deveres de consulta e consideração das posições que lhe sejam transmitidas por aqueles (o que, aliás, traduz há muito um incumprimento do Estado Português das suas obrigações à luz do Regulamento (UE) 2019/452, que é de lamentar). Se a Proposta for aprovada nos termos atuais, o regime nacional terá de incorporar essas obrigações bem como as inovações elencadas acima, instituindo um sistema de cooperação para operações com impacto em vários Estados-Membros, bem como a possibilidade de analisar investimentos realizados noutros Estados-Membros.

Próximos passos

A Proposta agora publicada pela Comissão é apenas o primeiro passo do procedimento legislativo europeu, dependendo de aprovação tanto do Parlamento Europeu como do Conselho, que reúne os Governos dos Estados-Membros. Em matéria de segurança nacional, os Estados-Membros têm sido tradicionalmente ciosos das suas competências, pelo que a Proposta agora divulgada será provavelmente objeto de diversas alterações antes de ser aprovada.

Não obstante, a Proposta sinaliza, desde já, a vontade da União de intensificar significativamente o controlo de operações de investimento que envolvam empresas de países terceiros, as quais têm interesse em acompanhar a evolução do procedimento legislativo e os termos em que o diploma final será aprovado.