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05.06.2012 Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil • Jorge Simões Cortez • Almedina

As Formalidades da Transmissão de Quotas e Acções no Direito Portuguès: dos princípios à prática

Este artigo integra a publicação Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil, com coordenação de Fábio Ulhoa Coelho e de Maria de Fátima Ribeiro. Pode ser consultado na íntegra aqui.

As Formalidades da Transmissão de Quotas e Acções no Direito Portuguès: dos princípios à prática

JORGE SIMÕES CORTEZ*

(Com a colaboração de INÊS PINTO LEITE**)

1. O escopo original do presente artigo era descrever os aspectos essenciais do regime da transmissão inter vivos das participações socais em socieda­des anónimas e por quotas no direito português2 - o que, de acordo com uma sistematização que pode considerar-se habitual entre nós3, passaria por tratar a forma da transmissão, por um lado, as limitações a essa mesma transmissão, por outro4, e, finalmente, a aquisição de participações sociais como forma (indirecta) de adquirir a empresa societárias.

Por outro lado, o nosso propósito sempre foi o de tratar o regime da transmissão inter vivos das mencionadas participações sociais exclusiva­mente no plano do direito constituído. As considerações de índole mais teórica limitar-se-iam, por conseguinte, às estritamente indispensáveis a uma adequada compreensão das normas de direito positivo em que se encontra consagrado aquele regime.

2. À primeira vista, a matéria relativa à forma de transmissão (inter vivos) das quotas e acções parece ter uma natureza eminentemente formal, técnica, pelo que seria suficiente enunciar os actos necessários à respec­tiva transmissão.

Ao invés, o tema das limitações à transmissão das quotas e acções revestir­-se-ia de uma índole vincadamente material, por isso mesmo que as soluções consagradas na lei a esse respeito seriam o resultado da (justa) composição dos diferentes interesses em presença, mormente, mas não exclusivamente, o do sócio que pretende transmitir as suas quotas ou acções, de uma banda, e o dos sócios que permanecem na sociedade, de outra6.

As mencionadas limitações revelariam, para além do mais, a diferença estrutural entre o tipo sociedade por quotas, de cariz reconhecidamente mais personalista, e o tipo sociedade anónima, de pendor mais capitalista', diferença esta que, aliás, fica bem evidenciada na comparação entre os traços gerais dos correspondentes regimes legais apresentada no quadro que se segue [...]

* Advogado. Sócio da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, Sociedade de Advo­gados, R.L.. Mestre em Ciências Jurídico-Comerciais pela Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto (2005).

** Advogada. Associadada da Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, Sociedade de Advogados, R.L.. Mestre em «Direito da Empresa e dos Negócios» pela Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional do Porto (2010).

1 Ao abrigo, portanto, do Código das Sociedades Comerciais (doravante, C.S.C), aprovado pelo Decreto-Lei ng 262/86, de 2 de Setembro, na redacção do Decreto-Lei nil 53/2011, de 13 deAbril, do Código dos Valores Mobiliários (doravante, C.V.M), do Código Civil (doravante, C.C.} e do Código do Registo Comercial (doravante, C.R.C). Todos os preceitos legais invo­cados sem indicação expressa da respectiva fonte legal referem-se ao C.S.C..

2 Desde o princípio, excluídos estavam, assim, tanto o regime da transmissão mortis causa, como o da transmissão inter vivos das participações sociais em sociedades civis simples (i.e., não constituídas sob a forma comercial), bem como em sociedades comerciais em nome colec­tivo e em comandita simples ou por acções.

Veja-se, p. ex., C0UTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Das Sociedades, Almedina, 44 ed., 2011, págs. 358 a 366.

4 Fundamentalmente, tratava-se de analisar os arts. 2282 a 2312 e 2422-A a 2422-F do C.S.C, preceitos que contêm o essencial da disciplina da forma e das limitações estatutárias à cessão de quotas (é entendimento unânime que a expressão «cessão de quotas» empregue no art. 2282 designa, precisamente, a transmissão inter vivos. Neste sentido, VENTURA, Raul, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Vol.1, Sociedades por Quotas, Almedina, 24 ed., 1993, págs. 576 a 578), e os arts. 392 a 1072 do C.V.M. (em especial, os arts. 802, 1012, 102' e 1052) e 3282e 3292 do C.S.C. (pese embora os arts. 2992, 3012 e 3042 do C.S.C. sejam também relevantes nesta sede), que regulam aquelas duas matérias relativamente às acções (como veremos, a circuns­tância de a transmissão de acções se encontrar regulada em parte no C.V.M. resulta de uma outra, qual seja, a de as mesmas serem expressamente qualificadas pelo legislador português como valores mobiliários, conforme dispõe o art. P do C.V.M.). Sobre estas matérias, veja-se, por todos, SOVERAL MARTINS, Alexandre, Cláusulas do Contrato de Sociedade que Limitam a 7)-ansmissibilidade das Acções — Sobre os arts. 328° e 329v do CSC, Almedina, 2006.

5 Constitui uma verdadeira vexata quaestio saber o que deve entender-se por empresa. Sobre esta matéria, veja-se, por todos, COUTINHO DE ABREU, Jorge Manuel, Lições de Direito Comer­cial, Vol. I, Introdução, Actos de Comércio, Comerciantes, Empresas, Sinais Distintivos, Almedina, 6" ed., 2008, pág. 191 e segs.. As empresas fazem parte do nosso quotidiano: é nelas que tra­balhamos, sao elas que gerimos, é com elas que todos os dias nos relacionamos para os mais variados propósitos. Não é, assim, de estranhar que todos nós tenhamos uma ideia mais ou menos aproximada do que é uma empresa: salvo erro, aos olhos do homem comum. a empresa surge sobretudo como um conjunto de pessoas e bens, organizado, que exerce uma determi nada actividade económica. No plano do direito, a empresa revela-se em várias acepções, de que se destacam três: a empresa enquanto actividade económica com certas características (cf., p. ex., art. 2302 do Código Comercial), a empresa enquanto sujeito que exerce uma deter minada actividade económica (cf., p. ex., art. 22, n21, da Lei n2 18/2003, de 11 de Junho) e, finalmente, a empresa enquanto objecto de direitos e de negócios jurídicos (cf., p. ex., art. 1622 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Enquanto objecto de direitos e negócios jurí­dicos, o direito toma (assume) e tutela a empresa (ou estabelecimento) como uma unidade, como um bem que é mais do que a soma dos elementos que o compõem a cada momento, elementos esses com os quais aquele não se confunde e nos quais não se esgota. O direito, por outras palavras, reconhece a empresa com propósito principal de atribuir direitos sobre a mesma enquanto unidade e de permitir e disciplinar a realização de negócios sobre a mesma também enquanto unidade. Enquanto objecto de direitos e negócios jurídicos, a empresa é para o direito, antes do mais, um conjunto de bens ou elementos, cuja composição, no entanto, está longe de ser pacífica. Não é, com efeito, inequívoco se fazem parte da empresa, isto é, se 

integram a empresa, todos ou apenas alguns dos elementos que se seguem: coisas corpóreas (p. ex., prédios, máquinas, ferramentas, matérias-primas, mercadorias), coisas incorpóreas (p. ex., invenções patenteadas, modelos de utilidade, desenhos ou modelos, nome e insígnia), direitos (p. ex., de crédito, de propriedade), obrigações (ligadas à exploração da empresa), situações de facto (p. ex., saber-fazer («know-how»)), relações de facto (p. ex., relação com for­necedores, clientes (clientela), financiadores). Continuando na mesma perspectiva, ou seja, continuando a considerá-la como objecto de direitos e negócios jurídicos, a empresa para o direito não se esgota nem se confunde com aquele conjunto de bens (factores produtivos, meios produtivos): ela é uma organização, a organização de um conjunto de bens ou um con­junto de bens organizado com vista ao exercício de uma determinada actividade económica (produção, comercialização, prestação de serviços). Na verdade, é o modo como aqueles bens se encontram organizados que faz com que surja um novo bem, distinto daqueles outros que o compõem, dotado de autonomia. Permanecendo na mesma óptica, importa referir, para fina­lizar, que, aos olhos do direito, a tutela da empresa enquanto objecto de negócios jurídicos parece só encontrar justificação a partir do momento em que a referida organização de bens está, para uns, ou é susceptível de estar, para outros, no mercado, ou seja, já tem clientela, para os primeiros, já tem aviamento, mas não clientela, para os segundos. Em suma, podemos dizer, com o Professor Orlando de Carvalho, que a empresa ou estabelecimento é uma «organização concreta defactores produtivos como valor de posição de mercado» — CARVALHO, Orlando, Direito das Coisas (O Direito das Coisas em Geral), Centelha, 1977, pág. 196, nota 2. Frequentemente, a lei emprega certos conceitos (p. ex., unidade económica, ramo de actividade, ramo de actividade independente) sem que seja inteiramente claro se pretende remeter o intérprete para o con­ceito de empresa ou se, pelo contrário, tem em vista realidades distintas. Alguns exemplos permitirão explicar melhor o que queremos dizer: (i) a propósito da cisão simples, o art. 124º, n91, alínea b), do C.S.C., cuja epígrafe é «Activo e passivo destacáveis», prescreve o seguinte: «1. Na cisão simples, só podem ser destacados para a constituição da nova sociedade os elementos seguintes: (..) b) Bens que no património da sociedade a cindir estejam agrupados, de modo a formarem uma unidade económica.». O nº 2 acrescenta: «No caso da alínea b) do número anterior, podem ser atribuídas à nova sociedade dívidas que economicamente se relacionem coma constituição ou funcionamento da unidade aí referida.»; (ii) de harmonia com o disposto no art. 3º, nº 4, do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, «Não são consideradas transmissões as cessões a título oneroso ou gratuito do estabelecimento comercial, da totali­dade de um património ou de uma parte dele, que seja susceptível de constituir um ramo de actividade independente, quando, em qualquer dos casos, o adquirente seja, ou venha a ser, pelo facto da aquisição, um sujeito passivo do imposto de entre os referidos na alínea a) do nº1 do artigo 2º».; (iii) sob a epígrafe «Efeitos da transmissão da empresa ou estabelecimento», o art. 2859 do Código do Trabalho dispõe como se segue: «1 Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de par te de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, bem co mo a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral. (..) 3 — O disposto nos números anteriores é igualmente aplicável à transmissão, cessão ou reversão da exploração de empresa, estabelecimento ou unidade económica, sendo solida riamente responsável, em caso de cessão ou reversão, quem imediatamente antes tenha exer­cido a exploração. (..) 5 - Considera-se unidade económica o conjunto de meios organizados com o objectivo de exercer uma actividade económica, principal ou acessória.»; (iv) o art. 73º, nº 3, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas estabelece o seguinte «Considera-se entrada de activos a operação pela qual uma sociedade (sociedade contribui dora) transfere, sem que seja dissolvida, o conjunto ou um ou mais ramos da sua actividade para outra sociedade (sociedade beneficiária), tendo como contrapartida partes do capita social da sociedade beneficiária.».

6 VENTURA, ob. cit., págs. 583 a 584.

O cariz personalista ou capitalista é, aliás, um dado a ter em conta quer na interpretação das normas legais mencionadas supra no texto, quer na eventual aplicação das soluções pre vistas para um tipo ao outro, aplicação esta que poderá esbarrar, precisamente, na falta d semelhança entre os dois tipos.