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12.01.2010

Briefing | AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA CONDENA “CARTEL DAS CANTINAS”

AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA CONDENA “CARTEL DAS CANTINAS”

No passado mês de Dezembro, a Autoridade da Concorrência sancionou um conjunto de cinco empresas activas no negócio da restauração colectiva com coimas no montante total de cerca de 14,7 milhões de euros, por alegadas práticas restritivas da concorrência no mercado das refeições e serviços de gestão e exploração de espaços de restauração colectiva (e.g., cantinas, refeitórios e restaurantes)1. As empresas envolvidas, as de maior dimensão no mercado nacional - Trivalor, Eurest, Uniself, ICA / Nordigal e Sodexo - sofreram sanções individuais que variaram aproximadamente entre 6,8 milhões e 357 mil euros2.

Trata-se do primeiro caso em que foi aplicada a chamada “Lei da Clemência” e em que foram condenados administradores e gerentes das empresas em causa, em coimas no total de 20.000 euros, excepto o denunciante, que foi dispensado da aplicação de qualquer sanção por ter fornecido informações e elementos de prova sobre os comportamentos em causa antes de a Autoridade ter iniciado qualquer investigação.

As condutas condenadas pela Autoridade

De acordo com a informação disponível, as empresas em causa terão celebrado um acordo através do qual procediam a uma fixação dos preços que apresentariam em concursos ou convites à contratação dos serviços em apreço. A Autoridade sustenta que as empresas sancionadas procuravam por esta via «garantir a manutenção dos respectivos clientes», através de um «direito de preferência» na contratação das «empresas incumbentes» em relação às suas concorrentes, e assim repartir os mercados entre si. Ainda segundo a Autoridade, o acordo incluía uma compensação a receber por cada participante das suas concorrentes, no caso de uma prestação de serviços não lhe ser adjudicada, bem como a possibilidade de as empresas, se insatisfeitas com as condições de preço propostas pelo cliente, provocarem a abertura de novo concurso, no qual as suas concorrentes colaborariam com a «apresentação de propostas de preços mais altos».

A Autoridade terá também condenado as empresas em causa pela prática de «intercâmbio de informações sensíveis», com o efeito de restringir, de forma sensível, a concorrência no mercado. Esta infracção - que acabou por não ser punida autonomamente dada a maior gravidade do acordo acima referido, tendo este “absorvido” aquela numa única infracção - foi considerada pela Autoridade também como «muito grave», uma vez que terá representado a criação de um mecanismo de cooperação que substituiu a incerteza normal quanto à conduta das empresas no mercado.

De todo o modo, as infracções em causa, imputadas às empresas em causa e aos seus representantes legais, terão abrangido a totalidade do território nacional e durado pelo menos durante nove anos (entre 1998 e 2007).

A concertação de concorrentes em processos concursais

Têm sido várias as investigações e condenações da Autoridade da Concorrência em processos de práticas restritivas que envolvem a colusão entre empresas no âmbito de procedimentos de contratação pública. A importância que é dada pela Autoridade a estes casos esteve na base de uma das recentes alterações à Lei da Concorrência2. O novo artigo 45.º da Lei da Concorrência passou a prever, a título de sanção acessória, a possibilidade de a Autoridade proibir as empresas envolvidas em infracções desta natureza de participarem em procedimentos de contratação por um período máximo até dois anos. Neste caso, a Autoridade fez saber que não podia aplicar esta sanção acessória uma vez que os comportamentos em causa terão terminado antes de 29 de Julho de 2008, data de entrada em vigor da referida alteração legislativa.

Primeira aplicação do Regime da Clemência

O designado “cartel das cantinas” apresenta pelo menos dois elementos inovadores e relevantes face à anterior prática decisória da Autoridade em matéria de práticas restritivas. Por um lado, trata-se da primeira decisão condenatória em Portugal adoptada ao abrigo do “regime jurídico da clemência”, criado pela Lei n.º 39/2006, de 25 de Agosto. Por outro lado, foi também a primeira vez que a Autoridade impôs sanções aos titulares dos órgãos de administração das empresas envolvidas, aplicando-lhes coimas no valor total de 20 mil euros. Os dois aspectos estão relacionados, como veremos.

Quanto ao primeiro ponto referido, salienta-se que esta é a primeira decisão que se conhece que surge na sequência de uma denúncia apresentada no quadro do regime jurídico da dispensa e da atenuação especial da coima em processos de contra-ordenação por infracção às normas nacionais de concorrência.

Já em situações anteriores a Autoridade havia iniciado inquéritos após denúncia de práticas restritivas, e tinha também já concedido reduções de coima às empresas que haviam colaborado com a Autoridade e fornecido elementos relevantes para a prova das infracções. No entanto, a recente decisão torna-se inédita entre nós na medida em que é a primeira vez que a Autoridade faz uso do mecanismo legal de clemência criado em 2006 e, fê-lo em toda a sua extensão, uma vez que adoptou uma decisão de dispensa de coima (também dita de imunidade total) em relação a um dos participantes na infracção. A dispensa de coima só pode ser atribuída em situações de “first in”, ou seja, no caso de uma pessoa singular ou colectiva ser a primeira a fornecer à Autoridade da Concorrência informações e elementos de prova que permitam provar a existência de uma infracção à Lei da Concorrência quando a Autoridade não tenha ainda procedido à abertura de um inquérito (estão também disponíveis reduções substanciais de coimas aos denunciantes que contactem a Autoridade e apresentem informações e elementos de prova relevantes após a abertura de inquérito).

É possível antever a partir dos elementos disponíveis neste caso que o processo terá sido iniciado após denúncia de um (actual ou antigo) membro dos órgãos de gestão da Eurest. Uma vez que este denunciante individual foi dispensado da aplicação de qualquer sanção nos termos da lei da clemência - foi aliás o único administrador das empresas envolvidas que não foi sancionado -, presume-se que os dados por si facultados à Autoridade terão permitido a esta tomar conhecimento da infracção e que a sua colaboração terá sido de grande importância para o processo.

Primeira condenação de titulares de órgãos de administração

A par da novidade que consiste no recurso ao instrumento da clemência neste caso, há ainda a assinalar que foi a primeira vez que a Autoridade aplicou uma sanção pecuniária aos representantes legais das empresas participantes numa infracção às regras de concorrência. A Lei da Concorrência permite, desde a sua entrada em vigor em 2003, que os administradores das empresas infractoras incorram na sanção prevista para estas, especialmente atenuada, quando conheçam ou devam conhecer a prática da infracção e não adoptem as medidas adequadas para lhe pôr termo imediatamente (a não ser que sanção mais grave lhes caiba por força de outra disposição legal).

No comunicado de imprensa que acompanhou a adopção da decisão, a Autoridade fez saber que o principal objectivo por si visado ao aplicar coimas aos representantes legais das empresas sancionadas é o de evidenciar que quem administra empresas deve fazê-lo no âmbito das regras de concorrência, procurando assim prevenir os ilícitos jusconcorrenciais. Segundo a Autoridade, a gravidade das infracções imputadas a estas pessoas singulares decorre «das práticas restritivas que deviam ter evitado, em razão da sua posição de liderança nas empresas arguidas». Estas declarações fazem antever que, de futuro, na presença de prova bastante do envolvimento em infracções desta natureza, a Autoridade venha a fazer uso deste expediente mais vezes e eventualmente com maior severidade.

A título de curiosidade, sublinha-se que, apesar de o administrador da Eurest, na qualidade de denunciante, ter sido o único representante legal das empresas envolvidas que não sofreu qualquer sanção da Autoridade, a Eurest foi, como vimos, uma das empresas sancionadas com a maior coima. Tal facto faz presumir, como aliás parece resultar do comunicado de imprensa divulgado pela Autoridade, que o administrador em causa apenas terá apresentado um pedido de clemência a título individual, não abrangendo a respectiva empresa.

Recursos e acções judiciais de indemnização

A decisão agora adoptada é passível de recurso para o tribunal de comércio territorialmente competente, com efeito suspensivo, havendo ainda lugar a recurso da decisão do tribunal de comércio para o tribunal da Relação competente, que decide em última instância (sem prejuízo de eventuais recursos para o Tribunal Constitucional). Caso as partes optem por recorrer judicialmente da decisão, é provável que o processo se prolongue por vários anos nos tribunais, como tem acontecido em outras situações.

Independentemente da fase de recursos judiciais que se possa seguir, este caso parece reunir todos os ingredientes para captar a atenção das entidades lesadas pelo alegado cartel - em primeira linha, as entidades públicas e privadas que tenham utilizado os serviços de catering das empresas em causa durante o período de vigência da infracção, ou que com estas hajam contratado a gestão e exploração dos respectivos espaços de restauração colectiva (no exemplo da Autoridade: hospitais, escolas, prisões, empresas e estações de serviço).

Às empresas lesadas por uma violação das regras de concorrência assiste o direito de instaurar acções de indemnização nos tribunais nacionais, com o objectivo de obter uma compensação pelos danos sofridos em resultado desse incumprimento. Estas acções não são ainda comuns no nosso país, mas, como é sabido, o encorajamento das autoridades de concorrência europeias neste domínio tem sido crescente. Neste tipo de acções de responsabilidade civil, a prova do ilícito está facilitada pela circunstância de a decisão da Autoridade da Concorrência, quando transitada em julgado, fazer prova junto dos tribunais