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29.05.2018

Reenvio prejudicial relativo à diretiva 2014/104/UE (Private Enforcement) - Processo C-637/17

Introdução

A Diretiva 2014/104/UE (private enforcement) (“Diretiva”), que visa facilitar o ressarcimento de danos decorrentes de violações ao direito da concorrência, entrou em vigor em 5 de dezembro de 2014. Sem prejuízo do prazo limite para a sua transposição ser o dia 27 de dezembro de 2016, o Projeto de Lei n.° 599/XIII e a Proposta de Lei n.° 101/XIII, visando exatamente a transposição da Diretiva, apenas foram aprovados pela Assembleia da República no passado dia 20 de abril de 2018. Tratou-se, pois, de uma transposição tardia, a qual suscita questões relevantes de Direito da União Europeia.

A 27 de maio de 2015, foi proposta pela Cogeco Cable contra a Sport TV e contra as suas acionistas – NOS e Controlinveste – uma ação de responsabilidade civil (private enforcement), com vista à indemnização de danos decorrentes de uma infração, por parte da segunda, ao direito da concorrência, sancionada pela Autoridade da Concorrência (AdC) a 14 de junho de 2013 e confirmada em recurso, quer pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (“TCRS”), quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL).

No âmbito desta ação surgiram diversas questões de direito da União, especialmente relacionadas com a compatibilidade entre as disposições nacionais e as da Diretiva em matéria de valor probatório de decisões administrativas ou judiciais declarando definitivamente uma infração ao direito da concorrência (artigo 623.° do Código de Processo Civil Português e artigo 9.°, n.° 1, da Diretiva) e com o prazo de prescrição do direito a propor uma ação de private enforcement (artigo 498.°, n.° 1, do Código Civil Português e artigos 10.°, n.os 2, 3 e 4, da Diretiva). Com efeito, a aplicação do prazo de prescrição constante do Código Civil significará que o direito invocado pela autora na presente ação já se encontra prescrito. Assim, o tribunal nacional decidiu colocar tais questões ao Tribunal de Justiça (TJUE), no âmbito do mecanismo do reenvio prejudicial.


O processo C-637/17

Este é o primeiro reenvio prejudicial envolvendo a Diretiva 2014/104/UE e reveste, por isso, um interesse acrescido que seguramente extravasará o caso concreto. Ademais, as questões colocadas apresentam-se vitais para a viabilidade e desfecho do processo principal a correr perante o tribunal nacional.

O órgão jurisdicional de reenvio colocou seis questões ao TJUE relacionadas, em grande medida, com a possibilidade de invocar certas disposições da Diretiva – artigos 9.°, n.° 1 e 10.°, n.os 2, 3 e 4 – no processo principal, não obstante o facto de, aquando da propositura da ação, o prazo de transposição ainda não ter expirado e a circunstância de aquele ser um litígio entre particulares, chamando assim à colação a temática do efeito direto horizontal das diretivas. Este processo exige igualmente a ponderação, por parte do TJUE, de outros princípios basilares de direito da União, como o princípio da interpretação conforme do direito nacional com o direito da União e a autonomia processual dos Estados-Membros, desde que observados os princípios da equivalência e efetividade.

Assim, com a primeira questão, o TJUE foi questionado sobre a possibilidade de os artigos relevantes da Diretiva serem invocados no processo principal, não obstante tratar-se de um litígio entre particulares. No âmbito da quarta questão, relevante caso a primeira seja respondida negativamente, visa-se essencialmente saber se as normas nacionais em causa devem ser interpretadas à luz da letra e finalidade das normas da Diretiva, não obstante, uma vez mais, a ação ter sido proposta ainda no decorrer do prazo de transposição. Esta questão levará o TJUE a pronunciar-se, mais amplamente, sobre as obrigações que impendem sobre os Estados-Membros, maxime os seus tribunais, no período compreendido entre a entrada em vigor e o termo do prazo de transposição de uma diretiva.

Com a segunda e terceira questões, o tribunal nacional interroga-se sobre se os princípios da equivalência e efetividade, enquanto limites ao princípio da autonomia processual, poderão ter consequências em sede de compatibilidade das normas nacionais relevantes com o direito da União.

Finalmente, com as duas questões finais (quinta e sexta), o tribunal nacional visou (e bem) assegurar que uma eventual resposta afirmativa a qualquer das questões precedentes não acarretaria uma violação do princípio da proibição da retroatividade, inter alia prescrito no artigo 22.°, n.° 1, da Diretiva. Assim, pergunta-se se a interpretação das normas nacionais relevantes à luz da letra e finalidade das normas da Diretiva não seria ela própria incompatível com aquele artigo 22.°, n.° 1. Se sim, o tribunal pretende adicionalmente esclarecer se as Rés no processo principal poderão invocar o artigo 22.°, n.° 1, limitando assim, em termos temporais, os efeitos decorrentes da interpretação das disposições nacionais à luz das normas da Diretiva.

No âmbito do processo de reenvio, terminou já o prazo de apresentação de observações pelas partes na ação principal. Aguarda-se, pois, a tradução das mesmas e, posteriormente, a decisão do TJUE sobre a necessidade de audiência de alegações e de apresentação de conclusões pelo Advogado Geral (artigo 59.°, n.° 2, da versão consolidada do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça de 25 de setembro de 2012).


Este artigo é da autoria dos advogados Gonçalo Machado Borges e Mariana Martins Pereira.