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29.05.2018

Acórdão Gasobra: Uma forma encapotada de non bis in idem

Introdução

Em finais de 2017(1), o Tribunal de Justiça (“TJ” ou “Tribunal”) apreciou a questão de saber se um tribunal de um Estado-Membro pode declarar inválido um acordo entre empresas, por violação das regras europeias que proíbem acordos restritivos da concorrência, quando a Comissão Europeia tenha previamente arquivado uma investigação antitrust relativa a esse acordo com base na imposição de compromissos às empresas em causa e sem constatar a existência de uma infração a essas regras.

Antecipa-se desde já que a resposta do Tribunal foi positiva e que essa conclusão, ainda que tenha sido enunciada em termos genéricos, sintéticos e aparentemente inócuos, é suscetível de gerar dúvidas e preocupações de longo alcance.

Resumo do caso e do acórdão

O processo tem origem num reenvio prejudicial operado pelo Tribunal Supremo de Espanha num litígio que opõe a sociedade Gasorba, S.L. (“Gasorba”) à Repsol Comercial de Productos Petrolíferos, S.A. (Repsol), em torno de um contrato para a exploração de uma área de serviço de abastecimento de combustível situada na província de Alicante. O contrato em questão impunha à Gasorba, na qualidade de locatário e distribuidor, uma obrigação de abastecimento exclusivo na Repsol, por um período de 25 anos, sendo que a Repsol comunicava periodicamente à Gasorba os preços máximos de venda de combustíveis ao público, permitindo a esta praticar preços inferiores, desde que fossem deduzidos à sua comissão e, portanto, sem afetar as receitas da Repsol.

A Comissão abriu uma investigação contra a Repsol, ao abrigo do artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), tendo considerado que o contrato em causa suscitava dúvidas quanto à sua compatibilidade com essa norma, na medida em que poderia gerar um efeito de encerramento significativo no mercado retalhista espanhol de combustíveis.

Em resposta às preocupações da Comissão, a Repsol comprometeu-se, designadamente a: (i) não celebrar futuramente contratos de exclusividade a longo prazo; (ii) não interferir no preço de venda dos combustíveis (sem prejuízo da possibilidade de determinação de preços máximos e recomendados); (iii) propor aos locatários das estações de serviço que tivessem contratos dessa natureza em curso, incentivos financeiros para lhes permitir terminar os contratos antes do seu termo; e (iv) não adquirir, durante um período alargado, estações de serviço independentes de que não fosse já fornecedora.

Por decisão de 2006(2), adotada ao abrigo do artigo 9.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, a Comissão tornou obrigatórios para a Repsol os mencionados compromissos.

Nesta sequência, a Gasorba intentou uma ação, junto dos tribunais espanhóis, para obter a declaração de nulidade do contrato celebrado com a Repsol e uma indemnização por danos com fundamento na violação do artigo 101.° do TFUE. A ação foi julgada improcedente nas duas primeiras instâncias judiciais e o caso chegou então ao Tribunal Supremo, que submeteu ao TJ duas questões prejudiciais, essencialmente para confirmar se o artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 – nos termos do qual, quando se pronunciarem sobre acordos ao abrigo do artigo 101.° do TFUE, que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, os tribunais dos Estados-Membros não podem tomar decisões que sejam contrárias a essa decisão – se opõe a que um tribunal nacional declare nulo um acordo entre empresas quando este acordo foi já objeto de uma decisão de arquivamento com compromissos tomada pela Comissão ao abrigo do artigo 9.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003.

O TJ começou por recordar que o referido artigo 16.° tem por objetivo assegurar a uniformidade de aplicação do direito da concorrência no espaço da União, uma vez que, num sistema de competências paralelas e descentralizadas como o que vigora em matéria de antitrust, o artigo 101.° do TFUE (tal como o respetivo artigo 102.°, que proíbe os abusos de posição dominante) é aplicado, não apenas pela Comissão Europeia, mas também pelas autoridades nacionais de concorrência e pelos tribunais dos Estados.

Sucede, porém, que, na resposta às questões prejudiciais, o que pesou mais para o Tribunal foi a natureza da decisão adotada pela Comissão quanto ao acordo entre a Gasorba e a Repsol. Isto porque, em decisões proferidas com base no artigo 9.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003, a Comissão arquiva a investigação relativa ao acordo em apreço, impondo como condição para o efeito o cumprimento de um conjunto de compromissos propostos pela empresa visada e sem constatar se ocorreu alguma infração ao artigo 101.° do TFUE.

O TJ frisou ainda que as decisões no quadro do artigo 9.°, são tomadas para dar resposta às preocupações jusconcorrenciais manifestadas pela Comissão após uma «mera apreciação preliminar» do caso e que, como tal, não podem ser vistas como uma «certificação de conformidade» da prática com o artigo 101.° do TFUE. Neste particular, o Tribunal fez ainda apelo interpretativo aos considerandos 13 e 22 do Regulamento (CE) n.° 1/2003 , na parte em que referem que as decisões de arquivamento com compromissos não afetam a competência dos órgãos jurisdicionais e das autoridades de concorrência dos Estados-Membros quanto à aplicação dos artigos 101.° e 102.° do TFUE.

Em face do exposto, o Tribunal declarou que o artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 deve ser interpretado no sentido de que uma decisão de compromissos aprovada pela Comissão relativamente a um determinado acordo não impede os tribunais nacionais de apreciarem posteriormente a conformidade desse acordo com as regras de concorrência e, eventualmente, declararem a sua nulidade nos termos do artigo 101.° do TFUE.


Comentário

Em termos abstratos, não se pode dizer que o desfecho decisório deste processo seja uma surpresa. Ele comporta, no entanto, riscos relevantes de tensão com outros direitos de igual ou superior relevo, que o TJ devia ter assinalado e ponderado, não só para permitir ao tribunal nacional tomar uma decisão ponderada no litígio principal que tem em mãos, mas igualmente para dissipar as dúvidas e preocupações que o acórdão não pode deixar de convocar.

Em nossa opinião, o Tribunal andou bem, quando declarou, como ponto de partida, que a proibição, prevista no artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003, de os tribunais nacionais adotarem decisões contraditórias com as que tenham sido tomadas pela Comissão em processos do artigo 101.° do TFUE, se destina a assegurar uma aplicação eficaz e harmonizada das normas de concorrência da e na União. Mas faltou dizer que, em processos de natureza sancionatória, este objetivo não pode ser isolado e visto como um fim em si mesmo. Ele tem necessariamente de se conformar com um propósito maior, que é o de prevenir um sistema paralelo que gere decisões materialmente contrárias e a “conta-gotas” em desfavor dos arguidos. Ou, dito de forma mais ampla e pela positiva: assegurar o respeito pelo princípio da segurança jurídica. E é por nem sequer aflorar este ponto – e, menos ainda, o afrontar – que o acórdão nos merece maior crítica.

Esta crítica sai reforçada porque, embora o conteúdo decisório do acórdão se tenha pronunciado apenas sobre a competência que os tribunais nacionais (man)têm face a acordos que tenham antes sido objeto de uma decisão da Comissão de arquivamento com compromissos, o TJ também se reportou à possibilidade de as autoridades nacionais de concorrência virem posteriormente a decidir sobre a legalidade de tais acordos à luz do artigo 101.° do TFUE.

Não se contesta que uma decisão da Comissão ao abrigo do artigo 9.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003, não conclui se o acordo investigado viola, ou não, as regras de concorrência. Mas já não conseguimos acompanhar o Tribunal quando, na prática, parece sugerir que essa decisão não teria subjacente um juízo valorativo sólido e coerente da Comissão quanto à gravidade do acordo em causa. É que a forma aberta como o TJ responde ao tribunal espanhol permite especular se, numa situação como a descrita, os tribunais e as autoridades nacionais poderiam em tese vir livremente a tomar partido pela ilegalidade desse acordo e daí extraírem eventuais punições associadas, sabendo-se que a Comissão não fez uma coisa nem outra.

Em casos como o presente, a Comissão não é apenas a primeira entidade a ocupar-se da análise jusconcorrencial do acordo. A circunstância de ela tomar a liderança da investigação significa que, num primeiro momento, tanto a Comissão como as autoridades nacionais de concorrência concordaram e decidiram, no âmbito da Rede Europeia de Autoridades de Concorrência, que a Comissão seria a entidade mais bem posicionada para instruir o processo. Paralelamente, de acordo com a prática decisória consolidada da Comissão, tipicamente esta instituição não aceita arquivar processos mediante compromissos se a natureza da infração exigir a aplicação de uma coima. Logo, ao contrário do que indicia o TJ, qualquer decisão nos termos do artigo 9.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 tem de ser inevitavelmente precedida de uma análise substantiva e suficientemente profunda sobre a gravidade do caso.

Ora, sendo a Comissão a entidade mais bem colocada para tratar um acordo ao abrigo do artigo 101,° do TFUE, tendo analisado esse acordo e concluído que ele não é suficientemente grave para ser declarado nulo e dar lugar à aplicação de sanções, não nos parece que ter depois as restantes entidades potencialmente competentes para aplicarem essa norma (tribunais e autoridades dos Estados-Membros) a adotarem decisões de sinal oposto seja a melhor forma de assegurar a consistência que o artigo 16.° do Regulamento (CE) n.° 1/2003 postula. Aliás, se o que preocupa o TJ num caso como este é acautelar a uniformidade de aplicação do direito europeu da concorrência, aparenta ser bem mais prejudicial a esse desiderato que os particulares que se considerem lesados e insatisfeitos com uma decisão da Comissão de arquivamento com compromissos não a contestem judicialmente no Tribunal Geral da União através da competente ação de anulação prevista no artigo 263.° do TFUE, permitindo assim que a decisão se cristalize e adquira força de caso julgado, e venham um dia mais tarde tentar obter solução distinta por via de uma atuação “descomprometida” dos tribunais e das autoridades nacionais.

A possibilidade de atuação posterior das autoridades nacionais de concorrência suscita ainda uma complexidade adicional. É que, para viabilizar o arquivamento condicional do caso por parte da Comissão, certamente que as empresas participantes no acordo tiveram de apresentar compromissos robustos e ajustados à remoção das preocupações identificadas por aquela instituição, compromissos esses que foram tornados obrigatórios pela decisão da Comissão. Se uma empresa nesta situação for depois confrontada com uma investigação ulterior de uma autoridade nacional que verse sobre o mesmo acordo, dificilmente essa empresa terá possibilidade de produzir mais e novos compromissos com a mesma abrangência dos que foram submetidos à Comissão e igualmente capazes de dissipar as dúvidas concorrenciais, desta feita da autoridade nacional. O que levanta a questão de saber se, ao permitir-se a acumulação ou sucessão de investigações, não estará invariavelmente a “forçar-se” uma condenação.

Em suma, a jurisprudência do acórdão Gasorba representa uma perigosa aproximação a algumas variantes da proibição de non bis in idem, pois ela abre a porta à possibilidade de duplicação de procedimentos, que podem dar origem a pronúncias de sentido contrário, por parte de diferentes entidades, em distintos momentos e tendo por objeto a apreciação de uma única e mesma conduta ao abrigo das mesmas regras.

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(1) Acórdão de 23 de novembro de 2017, Gasorba e Outros, C-547/16, EU:C:2017:891.

(2Processo COMP/B-1/38.348 Repsol C.P.P.