M L

29.05.2018

Mind the gap: os riscos da implementação antecipada entre signing e closing

O Grupo Altice/PT/Meo foi recentemente notícia a nível do direito europeu da concorrência pela Decisão da Comissão Europeia de multar o seu acionista Altice NV em cerca de 125 milhões de euros, por ter alegadamente violado a obrigação de standstill relacionada com a aquisição do controlo exclusivo sobre a PT Portugal/Meo.

Enquanto não for tornada pública uma versão não confidencial da Decisão da Comissão Europeia, que nos permita uma análise fundamentada dos pormenores dos factos em causa, apenas há que chamar a atenção para o tema da obrigação dita de standstill e o da sua violação: o chamado gun jumping.

Através deste termo de calão jusconcorrencial quer abranger-se um lato conjunto de eventos relacionados com a implementação de comportamentos por parte de empresas que pretendem adquirir o controlo de outras empresas-alvo ou ativos, em concentrações sujeitas a procedimento de autorização ou não-oposição prévias, junto das autoridades regulatórias nacionais ou europeia.

De acordo com a regra de standstill, mais ou menos coincidente a nível internacional, a concentração não se pode implementar ou concretizar antes de ser notificada e de a mesma ser autorizada.

A norma é clara mas, como é frequente nesta área do direito, o Diabo está nos detalhes.

É indubitável que a proibição abrange a transmissão de titularidade de partes sociais ou de ativos corpóreos ou incorpóreos (o efeito típico de concretizar uma aquisição), bem como a ocupação de cargos sociais na empresa alvo ou o exercício do direito de voto nos mesmos órgãos.

Contudo existem outros comportamentos cujo juízo de licitude/ilicitude é bem mais incerto.

Basta atentar no acesso a informação comercialmente sensível (e relevante do ponto de vista da concorrência) proporcionada ao adquirente nos processos de due diligence, quer antes da celebração do acordo de compra quer após este, para, por exemplo, fixar a contrapartida da transação.

Da mesma forma, a análise do valor económico que pode ser gerado com a operação (as sinergias ou economias, de custos, de gama ou de escala) bem como com a preparação dos procedimentos de transição para o controlo do novo sócio ou acionista (e a perceção dos respetivos custos e contingências) pressupõe sempre a disponibilização de dados “sensíveis”.

Por outro lado, a própria necessidade de um procedimento de autorização “jusconcorrencial” gera a existência de um hiato entre o momento em que o consenso se formou entre adquirente e alienante (ou entre participantes numa fusão) quanto ao desenho ou perímetro da transação e à respetiva contrapartida e o momento em que, após a sua autorização, a operação pode ser finalmente “concretizada” (a completion).

Ora, este hiato (ou gap) – que pode ser mais ou menos longo consoante a complexidade da análise substantiva ou processual da concentração em causa, mas que nunca é inferior a um mês e pode chegar facilmente a um ano – vai impreterivelmente causar que, por força da natureza das coisas, no momento do closing, o quid adquirido/fundido será diferente do que era no momento da celebração do contrato (na execution).

E não está excluído que, em função dessa “evolução”, positiva ou negativa, o comprador deixe de ter interesse em comprar (de todo ou pelo preço acordado, ainda que sujeito a revisão) ou o vendedor deixe de ter interesse em vender (nas condições contratadas).

Um hipotético recomeço do processo de due diligence e de renegociação das contrapartidas (ou dos riscos alocados a cada uma das partes) é completamente ineficiente e desincentivador de qualquer concentração: é que, neste período intermédio, a empresa transacionada tende a perder valor, até pela falta de capacidade de decisão estratégica e tática. Como se costuma ilustrativamente dizer, o vendedor já a vendeu mas o comprador ainda não a comprou.

Corresponde por isso a um interesse legítimo de comprador e vendedor assegurar que, no fim desse gap, a empresa-alvo mantém as suas características (entre as quais a sua presença no mercado e a sua performance, bem como a sua exposição aos vários riscos, próprios da sua atividade ou “patológicos”), ainda que isso possa representar uma limitação temporária da sua liberdade de atuação ou autonomia de decisão (logo uma potencial restrição da concorrência).

A solução extrema de resolver o contrato assinado, exonerando ambos os contraentes do cumprimento da transação acordada, não é obviamente uma solução minimamente apta pelas perdas que causa a todos os intervenientes.

Isto visto, a prática desenvolveu e consagrou uma série de procedimentos destinados a lidar com este foco de tensão inultrapassável: (i) cláusulas contratuais de proibição ou de sujeição de algumas decisões da empresa-alvo a concordância do adquirente (ínterim covenants), designadamente no que respeite a opções estratégicas em que se pondere um desvio do “ordinary course of business” ou de outra forma se possa afetar de modo significativo o valor da empresa-alvo; (ii) mecanismos de revisão da contrapartida após a concretização da transação (por vezes associados à própria retenção de parte do preço) para apuramento ou confirmação subsequente de certas realidades contabilísticas ou decontingências; (iii) acordos de confidencialidade muito detalhados e complexos; (iv) “ring-fencing” da informação sensível disponibilizada; (v) constituição de grupos fechados (distantes de posições-chave com impacto no mercado) de intervenientes para aceder e lidar com a informação crítica (“clean teams”), mas igualmente “vendors’ due diligences”, entre outras.

Só que a delimitação rigorosa das zonas “seguras” e “arriscadas” destes comportamentos nunca foi objeto de regras imperativas, de orientações ou diretrizes (soft law) nem de reflexão por parte da doutrina ou objeto de decisões judiciais. É, por isso, extremamente preocupante que a Comissão Europeia tenha decidido reforçar o elemento “dissuasor” da sua sanção, através de uma punição “moralizadora”, numa área em que imperam as dúvidas e as áreas cinzentas. Será algo que só se poderá apurar fielmente assim que sejam conhecidos os factos concretos do caso e se possa apreciar a censurabilidade dos comportamentos visados.

Até lá, mind the gap, resta às empresas envolvidas em processos de fusões e aquisições reforçarem os cuidados a ter com a sujeição das operações a controlo de concentrações, no que respeita à necessidade de submeter notificações para a sua autorização, à amplitude da informação partilhada entre as partes e à interferência precoce do comprador nas decisões do alvo.

Equipa relacionada